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  • Foto do escritorNathalia Vieira

Denúncia: Surda Mantida em Trabalho Escravo - Acessibilidade em Libras e Direitos Humanos


Chocou à maioria a notícia de que uma mulher surda, Sônia Maria de Jesus, negra, 50 anos, até este mês foi vítima de trabalho escravo na casa do desembargador Jorge Luiz Borba (TJSC).


O caso foi noticiado brevemente no Jornal Nacional e pelo site do g1 de Santa Catarina, onde o Ministério Público Federal investiga a denúncia.



O desembargador e a esposa "estariam mantendo, há pelo menos 20 anos, uma pessoa que realiza tarefas domésticas diversas, mas não possui registro em carteira de trabalho e não recebe salário ou quaisquer vantagens trabalhistas." (G1 de Santa Catarina)


Se você ainda não viu essas notícias, pode conferir os links de referência ao longo do texto.

Mas o objetivo de ter escolhido fazer um artigo sobre o assunto é que a necessidade de aprofundarmos mais sobre o contexto social que invisibiliza tantos casos semelhantes se faz cada vez mais urgente.


Como Tradutora, Intérprete e Guia-intérprete de Libras-Português há +14 anos, convivo com a violência contra pessoas surdas e surdocegas o suficiente para saber que o horror é bem mais comum e frequente do que o que chega à imprensa.

As pessoas surdas e surdocegas do Brasil vivem uma realidade de múltiplas opressões e discriminações que são interseccionadas com outras graves vulnerabilidades sociais.

Aumentando a gravidade e urgência de que a população em geral destape os olhos e faça algo para assegurar os Direitos Humanos desses sujeitos.


Por isso, te convido a tirar alguns minutos para pensar sobre isto neste artigo.


Bora lá? 😉

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SOBRE O CASO


A manchete deve ter te feito lembrar do caso que viralizou há alguns meses graças à denúncia feita pelo jornalista Chico Felitti no podcast 'A Mulher da Casa Abandonada'.


As 2 vítimas são mulheres negras, em situação de vulnerabilidade social, por terem sido abandonadas pela família.


As alegações dos investigados são semelhantes e as provas que nos fazem NÃO acreditar também são.


O Ministério Público do Trabalho segue o mesmo raciocínio, tanto que declarou:

"Apesar da alegação dos investigados de que Sônia era tratada como se fosse da família, ela nunca teve instrução formal, não aprendeu a ler e escrever e não foi, nem mesmo, alfabetizada na língua brasileira de sinais (libras), o que lhe retirou toda a possibilidade de autonomia e de desenvolver seus potenciais."


Comunicava-se precariamente, por meio de gestos simples, só entendidos por que convivia com ela dentro da residência, e não possuía convívio social fora do ambiente dessa família." (Site do MPT-SC)


O que nós, Tradutores e Intérpretes de Línguas de Sinais e Português chamamos de sinais caseiros, que na maioria das vezes são o recurso de comunicação usado por pessoas surdas que foram isoladas socialmente.


A alegação comum no Brasil de dizer que empregadas domésticas "são parte da família" é de cunho colonialista, para justificar jornadas de trabalho abusivas e remuneração baixíssima ou inexistente e está presente desde os registros do período imperial escravagista, na literatura infantil da minha geração como a personagem tia Anastácia no Sítio do Pica-pau Amarelo de Monteiro Lobato, até os stand-ups de hoje.


"Diferentemente dos filhos biológicos do casal, ela passou a ter plano de saúde, CPF, RG e título de eleitor somente em 2021. Antes dessa data, seu único documento era a certidão de nascimento." (Site do MPT-SC)


A escravidão é normalizada, mudando apenas de nome, tolerada, perpetuada e vitimando sempre o mesmo perfil de pessoas. A maioria mulheres, negras, que não tem uma estrutura econômica nem familiar, e abusadas desde a infância.


Não é como se a família do desembargador a escondesse em um porão secreto. Ela foi adotada pela sogra dele ainda criança, trabalhava também desde a infância, e foi levada pela esposa do juiz para sua casa, onde os funcionários que lá trabalhavam, todos os familiares e amigos que frequentavam a residência sabiam da situação, tanto que foram intimados como testemunhas.


20 anos é muito tempo. Então por que ninguém denunciou antes? Por que ninguém se chocou e fez algo sobre?


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PANO DE FUNDO



O objetivo aqui não é de forma alguma colocar as pessoas surdas num papel de vítimas, generalizado, de fazer um apelo sensacionalista e capacitista.



Pessoas Surdas e Surdocegas são sujeitos dotados de capacidade, inteligência, talento, defeitos e erros como quaisquer outras.


A questão é que não há como combater o verdadeiro capacitismo, que está entrelaçado com outros crimes que são estruturantes de nossa sociedade (Tais como o racismo, o machismo, a desigualdade socioeconômica e tantos outros) sem expor essa realidade.


É a estrutura social que deixa as pessoas vulneráveis e, por sua vez, é esta vulnerabilidade que as deixa mais suscetíveis a serem vítimas.


Mas daí você pode pensar 'todos os surdos que conheço são pessoas independentes, fortes, que superaram as barreiras e são protagonistas da sua história'.


Que bom!!! É a oportunidade pela qual luto para que todos tenham.


Contudo, é impossível olhar as estatísticas demográficas e não concluir que estes surdos são privilegiados, são a exceção à regra.


Não é uma questão de meritocracia. Se acredita nisso reavalie suas fontes de informação, estude. Afinal,

👉🏽 Se mais da metade da população brasileira é negra;


👉🏽 Se em 2019 6,6% é analfabeta e apenas 46,6% da população de 25 anos ou mais de idade estava concentrada nos níveis de instrução até o ensino fundamental completo ou equivalente; 27,4% tinham o ensino médio completo ou equivalente; e 17,4%, o superior completo (PNAD/IBGE)


como isto não se reflete na população surda?

Quantos surdos que sabem fluentemente português, que exercem sua profissão de formação, que são independentes, que estão nas redes sociais, que lideram na comunidade surda, que exercem papel político, são negros?

Quantos surdocegos você conhece? Quantos desses são independentes, e acessam os direitos humanos mais básicos?


São perguntas que passei a me fazer e que são resultado de 3 perspectivas, que vou te convidar a refletir através de experiências reais que vivenciei:


PERSPECTIVA 1 - Econômica

Em 2020 30,4% da população estava em situação de pobreza, um recorde que vem aumentando desde 2012.


De acordo com um estudo feito pelo Laboratório Desigualdades em parceria com a PUCRS - Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e divulgado pelo G1, "os grupos mais atingidos pelo aumento da pobreza social foram os negros e moradores das regiões Norte e Nordeste.


Entre os brancos, a taxa de pobreza social era de 19,4% em 2021, enquanto o percentual entre os pretos, pardos e indígenas chegou a 38,9%." (G1)


Em 2013 atuei como intérprete e Guia-intérprete na Feneis Minas Gerais, com a equipe que inaugurou o setor social da instituição - a maioria da população surda, assim como da população brasileira no geral, era e é pobre.


O que implica em dificuldade de acesso à saúde que se reflete em diagnósticos tardios, atraso na aquisição de língua, falta de acesso à acompanhamento fonaudiológico, psicopedagógico, pais que não sabem Libras e não podem se dedicar integralmente para garantir que o(a) filho(a) surdo(a) tenham toda a estrutura que compense as barreiras sociais que vai enfrentar.


Por isto, a Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos (FENEIS), que representa a organização da comunidade surda em associações em todo país e media seus interesses com outras entidades e governo, tem papel central na história.


PERSPECTIVA 2 - Educação


Acesso à educação é um fator fundamental para a promoção da democracia e do desenvolvimento da cidadania.


No entanto, de acordo com os dados que já apresentei no início, a maior parte da população brasileira não tem acesso à educação. As pessoas surdas não compõe uma realidade diferente do restante do país.


Há alguns anos fui trabalhar no interior de Minas Gerais como Intérprete de Libras na rede estadual de ensino.


Sou de BH e trabalhei como formadora e avaliadora de Intérpretes no CAS, lá recebia vários casos e relatos de alunos Surdos sem nenhum Intérprete porque nas suas respectivas cidades não havia nenhum profissional para atender.


Fiz parte de um grupo de trabalho na Diretoria de Educação Especial do Estado (DESP), da época, junto com o Movimento Bilíngue da Comunidade Surda para pensar soluções.


No final fiquei cansada de quanto a "politicagem" engessa o sistema e perpétua a injustiça que é negar o DIREITO à educação básica para as crianças e jovens Surdos na sua língua natural, a Libras.


Por isso me demiti. Por isso também fui trabalhar na linha de frente, no interior de Minas, para tentar fazer diferença para quem importa, as pessoas Surdas.


E foi a experiência mais impactante que já tive em toda minha carreira!!!!🤯


Resumindo peguei uma designação para ser Intérprete de Libras de uma aluna surda no 1°ano do Ensino Médio e, junto com professores, diretor e comunidade escolar, construímos juntas algo incrível em 3 anos.


Uma menina linda e muito inteligente, que sabia Libras, apesar da limitação linguística que a família por não saber libras e a falta de contato com outros Surdos ou ouvintes fluentes lhe impunha.🧏🏻 ♀️


Essa menina, só havia tido um Intérprete no 6° ano do ensino fundamental. Todo o resto da sua "educação" tinha passado em branco, já que não tinha acessibilidade em Libras.

Foi um caminho duro. Ela tinha uma letra linda porque lhe mandavam copiar tudo, mas ela NÃO SABIA LER NEM ESCREVER.


👀Ela achava que a Terra é plana, porque os mapas nos livros são planos.


🫢Ela achava que avião, pirâmides, e outros países como Japão eram ficção, afinal a mãe sempre disse, na sua limitação, que o que passava na televisão era mentirinha.


🥲Ela interrompeu uma aula de física, em que a professora usou o exemplo da gravidade da Terra em comparação com a da Lua, por ficar fascinadaaaaa em descobrir que existe um universo, que a Terra está suspensa no espaço, que existe um espaço, um universo.


As descobertas dela foram inúmeras e a vida dela mudou completamente, ela passou a ter autonomia, conhecer seus direitos e deveres, se tornar uma cidadã e até a se proteger de abusos por passar a ter ACESSO À INFORMAÇÃO, ter ACESSIBILIDADE NA COMUNICAÇÃO.


PERSPECTIVA 3 - Política


Hoje trabalho principalmente em contextos de conferência audiovisual de espaços acadêmicos e governamentais.


E o desconhecimento de nossos representantes sobre as pautas de acessibilidade para as pessoas surdas e surdocegas ainda é gigantesca.


Interpreto quase que diariamente discursos que refletem o racismo, o capacitismo e o desprezo ou falta de sensibilidade à pobreza.

Interpreto quase que diariamente discursos que refletem o racismo, o capacitismo é o desprezo ou falta de sensibilidade à pobreza.

Afinal nossos representantes nos 3 poderes (legislativo, executivo e judiciário) ainda são de na maioria homens, CIS, hetéros, brancos, com privilégios e representando alguma religião.

Então será que é de surpreender que a opressão está sendo perpetuada e que em pleno 2023 ainda passam desconhecidos os múltiplos casos de


☢️Violência contra a mulher surda

☢️Racismo contra as pessoas surdas

☣️Escravidão ou serviços análogos à Escravidão

☢️Cárcere privado / Violência doméstica

☢️Violação dos direitos da criança e do adolescente surdos e surdocegos

☢️Falta de acesso à educação pública e privada

☢️Falta de acesso à saúde pública e privada

☢️Falta de acesso à trabalho e renda / Pobreza

☢️Falta de autonomia

☢️Impossibilidade de exercer sua cidadania

☢️Falta de acesso ao sistema de justiça

☢️Falta de acesso à informação e comunicação (TV, Internet, redes sociais, etc)???

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ACESSIBILIDADE EM LIBRAS E DIREITOS HUMANOS


Vamos fazer um exercício. Imagine que você fosse vítima de um dos crimes listados acima, mas quando fosse falar com sua família, amigos ou à polícia por algum motivo não falasse mais português e só finlandês.


O que você faria?


Você não tem dinheiro, ninguém lhe compreende e você não compreende ninguém.

O problema é você ou a barreira de comunicação que te impede de acessar seus direitos, de usar suas habilidades, de encontrar uma solução e sair dessa posição?

As pessoas surdas são tão brasileiras, cidadãs, sujeitos de habilidades e potencial para contribuir com a sociedade quanto qualquer ouvinte.

Feliz aquela pessoa surda que tem o privilégio socioeconômico de dominar o português, que não é sua língua natural.


Mas quanto à todos os outros surdos que não tem esse privilégio precisamos garantir que a acessibilidade em Libras, a acessibilidade na comunicação, seja assegurada em todos os espaços, em todas as temáticas, em todos os canais de recepção e difusão de informação.

A constituição brasileira no artigo 5º XIV diz "é assegurado a todos o acesso à informação". A PEC da Acessibilidade, aprovada em 2021 pelo Senado, é uma proposta que acrescenta os termos "acessibilidade" e "mobilidade" ao próprio artigo 5º, que trata dos direitos

fundamentais e deveres individuais e coletivos dos brasileiros, tramita há longos 9 anos.


No entanto, o que não falta é legislação já vigente que assegura as pessoas surdas seu direito de acessibilidade em Libras.

Em especial o Decreto 5626/2005, que regulamenta a Lei da Libras de 2002, garante o direito de acessibilidade na língua natural dos surdos nos âmbitos educacionais, na saúde e nos meios de comunicação e informação. Assim como, a Lei Brasileira de Inclusão (LBI) e uma série de outros aportes jurídicos preveem esse direito linguístico.


Mas 20 anos se passaram e a situação da comunidade surda brasileira ainda não tem seu direito respeitado na maioria dos contextos.


O que fazer então?


Ainda não temos uma legislação fiscalizadora e punitiva que force à essa mudança. Precisamos nos mobilizar para que essa legislação seja criada.


Ainda não temos uma legislação fiscalizadora e punitiva que force à essa mudança. Precisamos nos mobilizar para que essa legislação seja criada.

Só assim os direitos humanos dessas pessoas finalmente serão garantidos e em contra partida a sociedade se beneficiará de todos seus talentos, habilidades, cultura e conhecimento.

Mas quanto todos os outros surdos que não tem esse privilégio precisamos garantir que a acessibilidade em Libras, a acessibilidade na comunicação seja garantida em todos os espaços, em todas as temáticas, em todos os canais de recepção e difusão de informação.

Enquanto isso, cabe a cada um de nós passar a tornar nossa comunicação acessível garantindo que nossas redes sociais, blogs e sites sejam acessíveis em Libras e que todos os canais audiovisuais pessoais e de onde trabalhamos tenham Legendas + Libras.


Foi com este intuito que lancei a campanha Brasil pela Libras com o apoio do Linkedin ano passado.


Clique aqui no meu site para mais informações, se inspirar e seguir o exemplo das pessoas e empresas que já se juntaram a este movimento. Lá você também encontra e-books gratuitos para saber como se tornar acessível em Libras para ontem. Essa luta é de todos nós!


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VERSÃO DO ARTIGO EM LIBRAS



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SOBRE A AUTORA



Com formação acadêmica especializada em Comunicação Assistiva - Libras e Braille e em Tradução e Interpretação, Libras-Português.


Tenho +14 anos de experiência atuando nas principais instituições referência na área, tais como FENEIS (Federação Nacional de Educação e Inclusão do Surdo), PUC Minas, CAS (Centro de Capacitação de Profissionais da Área da Surdez da Secretária de Educação do Estado de Minas Gerais), UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e hoje autônoma e freelance com uma marca pessoal de peso no mercado.


Conhecida na comunidade surda como uma sinalização marcante e parecendo ser Surda, com expertise em Tradução audiovisual, acadêmica, empresarial e publicidade; Interpretação Simultânea remota e presencial de conferências, lives, cursos, congressos, treinamentos e outros; além de ser Guia-intérprete em diferentes tipos de comunicação. Com diferencial de um Home Studio Profissional com equipamentos de ponta.


Acessibilidade com qualidade de verdade. Preço e prazos justos.


Vamos conversar?

contato@nathaliavieiralibras.com.br


FAÇA MELHOR. FAÇA DIFERENTE. FAÇA COM A GENTE.

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